Saturday, March 11, 2006

O Dia da Mulher, a world music, a pornografia e o Ali Farka Touré

Já passaram três dias, mas só hoje é que ganhei coragem (e força de vontade sobre a preguiça) para escrever sobre isso - o Dia da Mulher é uma daquelas coisas que me irrita profundamente.

É verdade que a facilidade com que agora se promulgam dias de qualquer coisa (existe o Dia Internacional da Chave-Inglesa, o Dia Internacional Anti-McDonald's ou o Dia Internacional da Biblioteca Escolar, só para mencionar os três mais ridículos que me apareceram na primeira página da busca do google) levam esse conceito, rapidamente, para um abismo de vulgaridade. Mas o Dia Internacional da Mulher é algo que fica noutro patamar. Pior que isso, só mesmo as mulheres que se orgulham desse dia.

Desde que as mulheres deixaram de ser condescendentes perante a sua presença passiva na sociedade, lutando contra a segregação da mulher da mesma forma que se já havia lutado contra a segregação racial, que o principal grito de revolta é o direito à igualdade. Ora, partindo automaticamente do princípio que há um dia internacional para a mulher, isso significa que não há igualdade entre os sexos. E partindo ainda do facto de ter sido um dia criado a partir da iniciativa de um grupo de mulheres, então rapidamente chegamos à conclusão que nem as próprias mulheres, que apregoam a sua igualdade perante os homens, se consideram iguais. Ou será que é como dizia Orwell, de que somos todos iguais, mas há uns mais iguais que os outros?.

Por isso, o Dia Internacional da Mulher é uma coisa ridícula, quase pornográfica. Equiparo isso a outro facto que, ao ser criado na tentativa de conceder igualdade de direitos, apenas acentuou a sua segregação: falo da world music.

O termo world music serve, dentro do senso comum, para designar todos os estilos musicais que não se identifiquem com os moldes musicais anglo-saxónicos. Ou seja, tudo o que é feito fora da Europa e da América do Norte e que não é rock, pop e seus derivados, é vulgarmente designada de música do mundo. E isso já é tão vulgar e insuspeito, que ninguém acha esquisito que a música cigana da Macedónia, o fado de Portugal ou o afrobeat da Nigéria sejam postos no mesmo saco da chamada música do mundo. Mais ridículo só pensar que música do mundo é aquela música típica de certas partes do mundo. Mas o country norte-americano não seria também world music para um chinês?

É certo que os rótulos na música só fazem sentido na FNAC, para podermos procurar certos discos mais facilmente. E mesmo assim, certas vezes, encontramos algumas barbaridades. Como aquele CD de Mr. Bungle que uma vez encontrei junto da música metal. Mas não é disto que queria falar; estas linhas anteriores serviram sobretudo de introdução para o assunto realmente importante: o da morte de Ali Farka Touré.

O músico do Mali desapareceu esta semana, vítima de doença prolongada (e desconhecida). Disseram que morreu na cama, em paz e a sorrir, depois de ter passado os últimos meses a tocar solitariamente com o seu filho e a recordar o concerto em Monsanto como o último da sua vida (foi na realidade o penúltimo, mas parece que o concerto em Nice não correu nada bem, recebendo inclusive insultos racistas do público).
O blues sempre foi um dos cartões de visita dos Estados Unidos, um estilo de música tipicamente americano, criado pelos escravos negros dos campos de algodão junto ao Mississipi. No entanto, quando o mundo começou a escutar com atenção um certo estilo de música vinda do Mali, chegou-se à conclusão que era ali que estavam as raízes do blues, antes de criadas as rotas migratórias da escravatura ocidental.

Ali Farka Touré foi o maior ícone da música do Mali. Levou o seu blues do deserto a todo mundo, venceu dois grammys, colaborou com Ry Cooder, Taj Mahal e outros músicos ocidentais conceituados e participou activamente no melhoramento do seu Mail natal, construindo dezenas de escolas e outras infra-estruturas. Ali Farka era um africano com um cahpéu de cowboy, que frequentemente apelidavam de Johnny Lee Hooker africano. Mas ele era mais uma espécie de Jimi Hendrix africano na forma como se tornou num ícone popular.

Agora, com a sua morte vão-se sobrepôr as referências, as reedições e os tributos. Perde-se o homem, ganha-se a memória. Pode ser que agora mais gente lhe dê o merecido reconhecimento que não recebeu em vida.